Em artigo exclusivo para o 247, o jornalista Breno
Altman condena a aplicação de uma lei antiterrorismo para conter as
manifestações e os protestos de grupos como os black blocs, que mataram o
cinegrafista Santiago Andrade; "Não resta dúvida que os black blocs são
erva daninha a ser extirpada das lutas sociais", diz ele; "outra coisa,
porém, é responder ao fenômeno da violência de grupos minoritários com o
recrudescimento da repressão estatal e adoção de legislação especial";
Altman contesta o senador Jorge Viana (PT-AC), que defende a votação da
lei que tipifica o terrorismo no Brasil; "leis repressivas, ao forjar
cenários de exceção, são um câncer para a democracia", diz Altman
A comoção provocada pela
morte do cinegrafista Santiago Andrade tem produzido importantes debates
sobre violência política. Um dos focos dessa discussão é desmascarar a
prática black bloc como veneno no interior de alguns movimentos
sociais, ao sabor dos que desejam criminalizar a mobilização popular e
tonificar o aparato repressivo do Estado.
Somam-se a esta tática
mascarada tanto uma franja niilista, marginal e bem-vestida da juventude
quanto a infiltração policial, com o apoio da mão de gato do
conservadorismo. A todos une a ideia do caos. Para os garotos da
baderna, fuzarca é a alegoria do que entendem por rebelião. No
dicionário dos marmanjos da reação, significa chance para desgastar o
governo às vésperas de eleições presidenciais.
Não é novidade histórica.
Casos de conduta similar são numerosos. Na
Comuna de Paris, em 1871, a
burguesia francesa abriu as portas das cadeias, oferecendo a
determinados presos o caminho da liberdade em troca de tocarem o rebu
nas ruas governadas pelo proletariado francês. Agregado aos provocadores
policiais, um razoável número de delinquentes deu os braços a certas
correntes anarquistas e, juntos, barbarizaram a autoridade das
instituições comunais. De bandeja, serviram o pretexto que ampliou a
audiência do discurso de restauração da ordem, finalmente imposta pela
aliança entre o exército alemão e as elites locais, que esmagou a
Comuna.
Não resta dúvida, portanto, que os black blocs são
erva daninha a ser extirpada das lutas sociais. Na melhor das
hipóteses, praticam esbulho de representatividade ao assumir papel
violento que não lhes foi delegado por ninguém, favorecendo os mais
tresloucados inimigos do povo. Na pior, comportam-se como criminosos
rasteiros e devem ser punidos como manda a lei. Os indivíduos que
cometerem atos delituosos devem ser identificados, detidos e levados às
barras dos tribunais.
Outra coisa, porém, é
responder ao fenômeno da violência de grupos minoritários com o
recrudescimento da repressão estatal e adoção de legislação especial.
Assim estão atuando, por exemplo, senadores – incluindo o petista Jorge
Viana, do Acre – desejosos de acelerar a aprovação da Lei
Antiterrorista, que endurece penas e tipifica situações excepcionais de
combate ao protesto tido como violento.
Afora demagogia com a
morte, a iniciativa deve ser condenada por ser um atentado contra a
democracia. Compreensível que o assassinato de um trabalhador estimule
sensação, entre diversos setores da sociedade, de que algo precisa ser
feito para evitar que a tragédia se repita. Mas não é aceitável que a
resposta faça o jogo da direita mais vulgar, cuja lógica é fortalecer as
casamatas judiciárias e policiais do Estado, em detrimento da
participação cidadã e da soberania popular.
O conservadorismo,
portanto, sabe bem o que quer e dispõe suas peças com coerência. Mas
homens e mulheres progressistas, quando caem nesta esparrela, cometem –
ou repetem – erros históricos.
O primeiro entre estes
equívocos é aceitar o diagnóstico de que exista uma epidemia de
violência política no país, fruto da guerra psicológica diuturna que a
velha mídia trava contra o PT e o governo.
Medidas especiais são apenas
para cenários extraordinários. Estamos diante de casos graves, porém
pontuais e isolados, que podem ser adequadamente enfrentados pelas leis e
instituições atualmente disponíveis. Ao comprar a análise do caos, quem
o faz ajuda a destacar agenda que interessa às forças reacionárias.
O segundo erro é não compreender que a ação de patotas marginais, como os black blocs, tem
sua origem e é alimentada pela violência descontrolada das polícias
militares estaduais, herança maldita da ditadura. A repressão às
manifestações é o caldo de cultura no qual o anarquismo de boutique
encontra alguma legitimidade política e social. Mais que isso: são as
armas de agentes do Estado que, incomparavelmente, produzem mais vítimas
e mortes. Leis que ampliem a repressão produzirão mais violência contra
o povo em movimento.
O que o país mais precisa é um esforço concentrado
para desmilitarizar as polícias, denunciando e punindo seus abusos,
como preâmbulo da repactuação no qual todas as classes e partidos
renunciem à violência como instrumento de luta política.
O terceiro tropeço é a
ignorância histórica. Ou é possível esquecer o que aconteceu na Espanha,
durante o governo do socialista Felipe González, quando foi adotada a
lei antiterrorista, para combater a guerrilha basca, liderada pela ETA?
Primeiro, foram reprimidos os combatentes armados.
Depois, todos os
agrupamentos ou movimentos pacíficos acusados de serem simpáticos ou até
de dialogarem com os insurgentes. Por fim, com os Grupos
Antiterroristas de Libertação, os GAL, foi criado um esquadrão da morte
clandestino para fazer o serviço sujo. Esse quadro, a propósito, foi um
dos motivos que levou, naquele momento, à ruina do PSOE de González:
para trilhar por esse caminho, o eleitorado prefere quem é
historicamente do ramo.
Outros exemplos poderiam ser dados. Bastante conhecido é o caso norte-americano, após a aprovação do Patriot Act e
a abertura da prisão de Guantánamo, em resposta aos atentados contra o
World Trade Center, em 2001. O atropelo contra direitos civis passou a
ser marca contemporânea da crescente limitação do regime de liberdades
previsto na Constituição dos Estados Unidos.
São incontáveis, enfim,
as evidências que leis repressivas, ao forjar cenários de exceção, são
um câncer para a democracia, alimentando mecanismos de criminalização da
participação popular e suas organizações. Nada poderia ser pior ao
avanço do processo de reformas. Qualquer perspectiva de esquerda, não
importa as circunstâncias, ou tem no protagonismo social o seu sal da
terra ou estará fadada ao fracasso.
Breno Altman é diretor do site Opera Mundi
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